Essa é a visão da treinadora de atletismo que acumula três décadas de trabalho e que treinou Pedro Nunes, atleta nas Olimpíadas de Paris
Quando Pedro Henrique Nunes competir nos Jogos Olímpicos de Paris, a treinadora Margareth Bahia não verá apenas seu atleta em ação no lançamento de dardo, mas o fruto do trabalho de mais de 10 anos que nasceu de um sonho. E para que esse objetivo se concretizasse, o trabalho passou por muitos braços que também abraçaram o projeto de levar um amazonense a Paris.
Trabalhando na pista da Vila Olímpica, a treinadora desenvolveu um trabalho com profissionais amazonenses e uniu forças para contrariar a tendência histórica do êxodo de atletas que precisaram sair do estado para ter mais oportunidades. E mesmo treinando um atleta de alto rendimento, Margareth também desenvolve novos talentos para expandir a modalidade e formar novos campeões num estado que, apesar de ter diversos desafios por conta da extensão geográfica e dificuldades logísticas, é um celeiro de talentos. Confira a entrevista.
Como foram os últimos dias de treino antes do Pedro embarcar para a Europa para os Jogos na madrugada do último domingo?
A gente preferiu ficar aqui. A gente tinha a possibilidade de não treinar aqui, mas a gente sentiu que lá fora quando a gente tem uma coisa, a gente não tem outra. Tem a pista boa, aí faltam alguns materiais que necessitam no treinamento que aqui a gente tem. Tem uma ótima sala de musculação, mas aí o treino dele é montado muito pra esse espaço aqui e aí quando a gente vai pra outro espaço que a gente não consegue ter tudo o que a gente precisa, de alguma forma fica faltando. Às vezes é necessário. Por exemplo, ele precisou ir para a Europa para poder competir na Europa, então é necessário isso. Mas aqui ele tem uma equipe de fisioterapia, que todo dia atende ele e lá a gente tem que ficar negociando, por exemplo, tem que pagar por fora. Tem algumas questões que em casa facilita como a alimentação, que pra gente seguir uma alimentação mais regrada aqui é mais fácil, o nutricionista é daqui. Eu sempre falo que é a ‘Equipe Jaraqui’ porque todo mundo é daqui, né? Então, eu como treinadora, o treinador que me ajuda na preparação física de força, que é o professor Thiago Bindá, tem o Neto Costa, que é o nutricionista, o fisioterapeuta que é o Adson. Então a gente tem uma fala mais próxima e quando a gente vai, tem que se adaptar todo e a gente sentiu que ele estava precisando primeiro dar uma descansada, uma revigorada, ver a família.
“A Federação do Amazonas é diferenciada, porque apoia demais todos os atletas”
O Amazonas não teve atletas em Tóquio 2020 e agora teremos o Pedro. Para que isso mudasse, veio apoio por parte da Secretaria. Como foi essa questão de reunião para alinhar esse apoio ao atleta durante o ciclo?
Naquele momento ali, meio de crise, nessa de ‘para ou não para’, libera ou não o Pedro para um clube lá fora, eu sempre dizia: poxa, a gente sempre trabalhou com tanto cuidado com ele para que ele se mantivesse íntegro, para que o corpo dele não fosse tão maltratado, porque o corpo de um atleta de alto rendimento já é maltratado, não tem jeito, é muito esforço, então a gente faz de tudo para que ele machuque o mínimo possível e aí chegou uma hora que a gente achou que teria que liberar o Pedro, porque a gente não ia querer frear o talento dele, ele tinha que voar mesmo que não fosse aqui. Só que nós estávamos com várias dificuldades nesse período de pandemia, não rolava dinheiro na cidade e não tinha como comprar passagem e isso e aquilo. Desde 2019, já estava complicado, mas, em 2020, eu lembro que tivemos que fazer uma vaquinha entre amigos do atletismo para o Pedro ir para o Troféu Brasil. Ali foi a gota d ‘água. Aí a Marleide [Borges], que era a presidente da Federação, pegou e apresentou o Pedro para o novo secretário, o Jorge, que está até hoje no cargo. E a Marleide mostrou o Pedro, o currículo dele e disse: se o Amazonas não abraçar, nós teremos que liberar para outro estado e, graças a Deus, ele abraçou. Ele acreditou na proposta da Federação e quando ele foi vendo o resultado do Pedro ele: opa, realmente as meninas estavam certas e foi quando o Sandro começou a trabalhar na Sedel. O Sandro já conhecia o nosso trabalho, conhecia o Pedro e a gente, de uma certa forma, e também falamos pra ele que precisava segurar esse pessoal aqui e, graças a Deus, foi quando eles começaram a ter ideias interessantes.
Além do Pedro, você trabalha com atletas mais jovens também. Como é esse trabalho para preparar esses novos atletas não só na prova do Pedro, como em outras provas também?
É um pouco cansativo, porque tem uma hora que a gente já prefere estar com atleta melhor organizado tecnicamente e aí você só ir aprimorando, porém depois que o cansaço passou, porque depois da pandemia eu descobri que não queria ficar em casa, e eu disse não: o que eu gosto mesmo é disso aqui. E eu fico muito feliz de ver o desenvolvimento daquele menino que às vezes não sabe nem andar direito, aquela menina que não sabe nem fazer um giro e, pouco a pouco, vão aprendendo técnicas tão difíceis como são as técnicas dos lançamentos. Por exemplo, hoje eu tenho uma lançadora de martelo, que já fazia um tempão que eu não tinha. Hoje eu estou com um grupinho de lançamento do disco e eu falava: eu preciso ter uma medalha no Brasil no lançamento do disco, que eu não tenho. Eu tenho no martelo, no peso e no dardo, mas no disco, não. Então eu disse: preciso encontrar um talento no lançamento do disco, preciso fechar essa caixinha de todos os lançamentos. E é muito legal ver eles aprendendo. Eu me especializei nisso, então acho que se eu abandonar isso de estar com os mais novos, ensinando para que eles se desenvolvam melhor, acho que eu não estaria fazendo o correto. E é muito legal ver essa turma se desenvolvendo não só como atleta, mas são meninas e meninos que precisam de pessoas bacanas que valorizem, que ensinem eles a serem persistentes e a não desistirem de lutar pelos sonhos.
Com quantos atletas você trabalha atualmente?
Hoje são nove, mas estão chegando mais. Eu vou tentar aumentar um pouco o grupo para 12, no máximo, porque senão perde a qualidade. Se eu tenho muito, eu não consigo dar qualidade. Como eu trabalho com prova técnica, então eu tenho que me dividir: 1h15, 1h30 com um grupo. Aí 1h15, 1h30, dependendo da prova, com outro.
Como foi o trabalho junto à Federação de atletismo?
A Lilian Valente (presidente da Federação de Atletismo) foi minha atleta no arremesso de peso há muitos anos. Na verdade, a Federação de Atletismo é feita de mulheres, basicamente de mulheres. Eu acho que o único que está muito próximo da diretoria é o Bruno. Eu sou treinadora, mas eu também sou diretora de arbitragem da Federação e já fui presidente da Federação por algum tempo, então a gente é muito envolvida com a modalidade. A gente não quer que isso morra nunca, então a gente se dedica mesmo. Tem a Marleide [Borges], por exemplo, que é ex-presidente da Federação, ex-atleta, ex-campeã sul-americana de salto em altura, mãe de atleta, treinadora, é dirigente.
Então a gente meio que faz de tudo um pouco e estamos o tempo todo fazendo de tudo para que se mantenha. A Lilian é muito focada e a gente vai tentando agregar mais os outros treinadores, não só nós, mas tem outros treinadores que também usam este espaço da pista cedido para a Federação em determinado horário. E a gente está aí se ajudando. A Federação, aqui no Amazonas, desde sempre é diferenciada, porque ela apoia demais todos os atletas. Tem Federação que diz assim: viagem, competição lá fora é com os clubes, se virem. Aqui não, se o clube não tiver condição de mandar o atleta para competir, a gente vai lá e faz.
O Pedro coloca o nome dele na história do atletismo amazonense junto com o Lyndon Johson, que foi para os Jogos de Seul 88, e do Sandro Viana, que é medalhista olímpico. Como é para você, como treinadora colocar um atleta ao lado desses nomes?
Eu reconheço que achava que talvez a gente nunca conseguisse por toda essa questão mundial de grandes potências. Por algum tempo, a gente achava que talvez a gente não conseguisse, mas como a gente ia crescendo pouco a pouco, esse sonho foi se abrindo. Eu disse: opa, é possível. Quando a gente foi vendo, através dos testes, através das competições dele, onde a gente estava conseguindo chegar, como treinadora eu estava conseguindo que ele se desenvolvesse, aí a gente foi vendo que era possível. E eu fico muito feliz com isso.
“Achava que talvez a gente nunca fosse conseguir [enviar outro atleta para as olimpíadas]”
Quão simbólico é que o Pedro chegue numa Olimpíada após fazer a preparação aqui, assim como o Sandro, que agora trabalha na Secretaria, fez a dele antes de ir para Pequim?
A gente sempre disse para o Sandro: se você é um atleta olímpico, você sabe o sonho que a gente tem e se hoje você tem o poder de fazer alguma coisa por eles, faça. E eu fico feliz que a Secretaria abraçou essa ideia. E não só para o atletismo, mas para as outras modalidades. E o que a gente espera é isso, que as pessoas que são envolvidas com o esporte, que sabem a luta que é ser um atleta, que sabem a dificuldade que é um amazonense competir lá fora.
Recentemente tivemos os Jogos Escolares do Amazonas (JEAs). Como uma competição dessas pode servir para encontrar novos talentos?
O JEAs é uma competição muito linda porque são muitos talentos. O Amazonas, principalmente na área dos lançamentos, tem muito talentos, a gente só precisa saber como organizar para que esses meninos possam treinar. Eu compreendo que o Amazonas é complexo. Tem meninos que moram em comunidades bem afastadas da sedes dos municípios e eu sei que é difícil tirar uma criança, um adolescente da casa dela, mas é legal ver que temos talentos. Eu falo com muita propriedade que fico feliz de ver que no Amazonas nós temos treinadores capazes de desenvolver esses talentos, tanto da capital quanto do interior. São pessoas aguerridas e que estão tentando fazer a diferença na vida desses meninos e buscando conhecimento.
Até porque, hoje vocês fazem um trabalho diferenciado, principalmente em relação ao que se fazia da década de 80 com os Festivais de atletismo…
Mudou muita coisa, Manaus cresceu muito. Eu sempre digo que meu sonho era que em cada zona da cidade nós tivéssemos uma pista, mesmo que fosse de barro, mesmo que não fosse uma pista de 400 metros, uma pista de 200 metros que desse para que esses meninos tivessem a oportunidade de praticar o atletismo. Eu acho que assim a gente conseguiria muita coisa. A gente tem vários relatos de meninos que o atletismo salvou a vida. Então a gente tem um lado social muito grande.
Fonte: A crítica